Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.
Assim como em outras composições do autor, estamos perante um desabafo do sujeito que parece tentar apaziguar a própria tristeza. O destinatário da mensagem de consolo, tratado na segunda pessoa, pode também ser o próprio leitor. Refletindo sobre a sua jornada e a passagem do tempo, constata que muita coisa se perdeu (“a infância”, a “mocidade”), mas a vida continua.
Conheceu várias paixões, sofreu perdas e desgostos mas soube conservar a capacidade de amar, apesar de todos os relacionamentos falhados. Fazendo um balanço, enumera o que não realizou e o que não tem, recordando dores e ofensas passadas e revelando que ainda são feridas abertas.
Quase no final da vida, olha para trás, reconhecendo aquilo em que falhou. Perante a injustiça social, o “mundo errado”, sabe que tentou se rebelar mas seu protesto foi “tímido”, não fez diferença. Mesmo assim, parece consciente de que fez a sua parte e de que “outros virão”.
Com a esperança depositada nas gerações futuras, analisando profundamente sua existência e cansaço, conclui que deveria se jogar no mar, terminar com tudo. Como se murmurasse uma canção de ninar, consola seu espírito e espera a morte como se fosse o sono.
…
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
Até mais!
Equipe Tête-à-Tête
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